Entendendo o sistema de crédito rural brasileiro
Junho 28, 2018

Recuperação judicial do produtor rural e a desnecessidade de dois anos de registro na junta comercial

A recuperação judicial para o produtor rural é um tema da mais alta relevância no cenário econômico atual, muito discutido nos tribunais, gerando controvérsias em relação a possibilidade do produtor rural, pessoa natural, requerer a recuperação judicial para superar uma crise econômica momentânea.

A temática tem encontrado cada vez mais repercussão diante da crise econômica atual, fazendo com que muitos produtores rurais tivessem grandes dificuldades para arcar com seus compromissos, correndo o risco de ver seu vasto patrimônio pessoal conquistado com anos de trabalho ser reduzido para pagamento de dívidas, oriundas em praticamente sua totalidade dos custos efetivos de produção.

Nesse contexto, e levando em consideração que em algumas regiões do Brasil a principal atividade econômica é desenvolvida pelo Produtor, coloca-se em voga a possibilidade do produtor rural (pessoa natural) requerer a justiça a sua recuperação judicial, nos termos da Lei de Recuperação de Empresas.

A lei 11.101/05 (Lei de Recuperação de Empresas) não prevê de maneira concisa amparo ao produtor rural (pessoa natural) em relação a recuperação judicial, fazendo com que a temática chegasse aos tribunais brasileiros diante da imprecisão legislativa sobre a questão, colocando como insurgência a possibilidade do produtor rural (pessoa natural) requerer a recuperação judicial sem a necessidade do prazo de 2 anos de registro na junta comercial, desde que comprovado o exercício de atividade econômica com documento fiscal tempestivo.

Para adentrar de maneira mais precisa no pano de fundo da discussão, é importante ressalvar aspectos históricos que evidenciam que a atividade rural não era disciplinada, inicialmente, pelo direito comercial brasileiro, sendo que o direito comercial brasileiro cuidava essencialmente das atividades econômicas de industrialização, circulação de bens e prestações de serviço (bancos e seguros), restando ao direito civil a regência das demais atividades. [1]

A atividade agrícola convivia em terreno separado do direito comercial justamente por não ser (conforme se definia na época) o agricultor um intermediário e sim um produtor. Assim, em meio a cem anos de vigência do Código Comercial do Império, ou seja de 1850 a meados do século XX, os produtores rurais tinham sua atividade econômica regida exclusivamente pelo direito civil.

A impropriedade de o direito comercial excluir a atividade rural de seu âmbito de incidência acentuou-se na segunda metade do século passado. Ilustrativo latente do descompasso encontra-se na discussão jurisprudencial em torno do acesso dos produtores rurais à concordata. Em meados dos anos de 1970 e 1980, pioneiras decisões oriundas principalmente da Justiça Mineira passaram a reconhecer o direito dos agricultores em dificuldade à concordata preventiva, embora a exclusão deles do favor legal fosse, então, inconteste para os doutrinadores comercialistas.

O projeto de lei que deu origem ao atual Código Civil é daquele tempo (1975). Uma de suas principais inovações consistia exatamente na substituição da teoria dos atos de comércio pela teoria da empresa, como núcleo essencial do direito comercial, acarretando uma amplitude ao âmbito de incidência deste a generalidade das atividades de prestação de serviços e as imobiliárias. Os produtores rurais, a seu turno, ficavam numa situação específica e, em certo aspecto, dupla; submetendo-se tanto ao direito civil como ao comercial. [2]

A partir da entrada em vigor do atual Código Civil, em 2003, o direito comercial passou a ser o ramo jurídico aplicável às relações entre empresários, legalmente definidos como os “exercentes de atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou serviços” (art. 966).

A legislação Civil passou a prever a possibilidade de o produtor rural e a sociedade rural se inscreverem no Registro Público de Empresas mercantis da respectiva sede (arts. 971 e 984) e, desse modo, ficarem equiparados, em todos os efeitos, ao empresário e à sociedade empresária. Isso significa o reconhecimento pelo legislador da existência de atividade econômica rural suscetível de receber então o mesmo tratamento que é conferido ao empresário. O critério adotado pelo Código Reale confere ao destinatário da norma a faculdade de determinar sua própria situação jurídica – ou seja, é ao produtor rural que a lei confere a escolha de qualificação.

Para alguém ser considerado empresário, e submeter-se ao direito comercial, não deve ser exigida a formalidade no registro na Junta Comercial. O direito comercial brasileiro continuou a prestigiar, mesmo com o advento do Código Reale, o critério material de identificação do empresário. Vale dizer, empresário é aquele que explora a atividade econômica com determinadas características (as compreendidas pelo conceito legal de “organização”), independentemente de se encontrar ou não inscrito no Registro de Empresas.

Quem exerce atividade econômica organizada de produção ou circulação de bens ou serviços é, só por esta situação de fato, legalmente um empresário, não cabendo qualquer exame relativamente à existência do registro na Junta Comercial. [3]

O registro prévio de dois anos pelo produtor é desnecessário para sua qualificação como empresário, eis que tal requisito é condição somente para o exercício “regular da atividade empresarial” (CC, art. 967). Nesse sentido, quem de fato explora atividade econômica organizada é empresário; se estiver registrado na Junta Comercial, será empresário regular; se explorar a atividade sem registro, será empresário irregular.

Esta é a regra geral do direito brasileiro, aplicável à generalidade das hipóteses de exploração das atividades econômicas no País.

No que tange a atividade executada pelo produtor rural, o código civil adotou regras especificas para a definição da sua natureza, sendo que o produtor rural é o único exercente de atividade econômica que a lei adotou um critério formal de identificação como empresário. As demais atividades, basta a exploração organizada, para o produtor rural exige-se categoricamente o registro na junta comercial.

É o que dispõe o art. 971 do Código Civil:

Art. 971. O empresário, cuja atividade rural constitua sua principal profissão, pode, observadas as formalidades de que tratam o art. 968 e seus parágrafos, requerer inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis da respectiva sede, caso em que, depois de inscrito, ficará equiparado, para todos os efeitos, ao empresário sujeito a registro.

A lei de recuperação de empresas buscou imprimir a identidade proposta aos produtores rurais expressa no art. 971 do Código Civil, não lhes reservando, portanto, nenhum tratamento diferenciado, podendo os produtores rurais requerer a recuperação judicial exatamente nas mesmas condições dos empresários comuns.

Em 2013, entretanto, a lei de recuperação de empresas foi alterada e passou a submeter o produtor rural a uma norma específica na matéria. A lei 12.873/03 introduziu no art. 48 da LRE o parágrafo 2ª com a seguinte redação:

§ 2o Tratando-se de exercício de atividade rural por pessoa jurídica, admite-se a comprovação do prazo estabelecido no caput deste artigo por meio da Declaração de Informações Econômico-fiscais da Pessoa Jurídica – DIPJ que tenha sido entregue tempestivamente.

A inserção do § 2 do art. 48 da LRE, passou a regulamentar o produtor rural de maneira peculiar ao estabelecer que poderá ser comprovado o exercício de sua atividade por mais de dois anos mediante uma específica declaração fiscal.

Ao fazer essa diferenciação o legislador coloca de um lado, o empresário em geral e, de outro, o produtor rural, no que se refere a prova do exercício de sua atividade econômica por mais de dois anos.

O único meio capaz de o empresário comum provar o requisito temporal é mediante o registro da junta comercial, não existindo outro mecanismo suficiente. Já o produtor rural possui, em lei, outros meios de prova da exploração de sua atividade por pelo menos dois anos antes do registro na junta comercial.

Caso o produtor não esteja escrito durante o prazo de dois anos, a lei lhe confere o direito de comprovar o lapso temporal exigido mediante exibição de documento fiscal, ex legis art. 48§ 2 da LRE.

Com base no contexto declinado, é possível verificar que o produtor rural que tenha solicitado registro na junta comercial às vésperas de apresentar o pedido de recuperação judicial, terá direito a medida de superação da crise econômica, desde que prove, por meio de documento fiscal tempestivamente apresentado, o exercício de sua atividade há pelo menos dois anos.

Desse modo, ao exigir do produtor além da comprovação de exercício a mais de dois anos, a inscrição na junta comercial por igual período, é contrariar de maneira direta e incisiva o que dispõe a Lei de Recuperação de Empresas, eis que o art. 48 § 2 da LRE só tem sentido de existir se o produtor rural puder solicitar a recuperação na excepcionalidade de não se encontrar registrado a mais de dois anos, mas com documento fiscal que comprove o exercício de sua atividade econômica pelo mesmo biênio.

Segundo preceitua o Ilustre professor Fábio Ulhoa Coelho [7], o tratamento desigual relativamente aos meios de prova do requisito temporal é plenamente justificável: a recuperação judicial só é acessível ao empresário que explora sua atividade econômica de forma regular; para os empresários em geral, a regularidade advém do registro na junta comercial, mas para os produtores rurais, o exercício da atividade é regular mesmo sem este registro.

Nesse sentido, as condições para que o exercente da atividade econômica tenha direito à recuperação judicial se limita em: ser regular e explorar atividade econômica há pelo menos dois anos.

O requisito temporal (dois anos de atividade econômica) é comum a qualquer tipo de empresário, incluindo o rural, sendo que a única excepcionalidade reside no fato de que o produtor rural não necessariamente deverá estar registrado na junta comercial há pelo menos dois anos, mas tão somente comprovar o seu exercício econômico mediante documento fiscal tempestivo, mesmo que tenha se registrado na junta comercial a véspera do requerimento de recuperação judicial.

Seguindo a linha de raciocínio aqui sustentada, os tribunais brasileiros têm, em sua grande maioria, conferido a recuperação judicial de produtor rural mesmo sem o registro prévio de dois anos na junta comercial.

Vejamos decisões proferidas pelo Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:

decisão que deferiu o processamento da recuperação judicial dos agravados. insurgência através de agravo de instrumento. admissibilidade. manutenção. produtores rurais. registro na junta comercial antes do pedido de recuperação. documentos que demonstram o efetivo exercício das atividades pelos agravados há mais de 2 anos. exegese do art. 48, §2º, da lei nº 11.101/05. processamento da recuperação que depende apenas da verificação formal dos requisitos objetivos dos arts. 48 e 51, da lei nº 11.101/05. recurso não conhecido no que diz respeito aos créditos sujeitos ou não à recuperação. questão a ser apreciada oportunamente. prazo de stay period. contagem em dias úteis. consonância ao entendimento firmado pela 1ª câmara reservada de direito empresarial. recurso não provido na parte conhecida.

Recuperação judicial Requerimento por produtores rurais em atividade por prazo superior àquele de 2 (dois) anos exigido pelo artigo 48, caput, da Lei nº 11.101/2005, integrantes de grupo econômico na condição de empresários individuais respaldados pelos artigos 966 e 971 do Código Civil e/ou de sócios das sociedades coautoras Legitimidade reconhecida. Irrelevância da alegada proximidade entre as datas de ajuizamento do feito e das prévias inscrições dos produtores rurais como empresários individuais na Junta Comercial do Estado de São Paulo Firme entendimento jurisprudencial no sentido de que a regularidade da atividade empresarial pelo biênio mínimo estabelecido no supramencionado dispositivo legal deve ser aferida pela constatação da manutenção e continuidade de seu exercício, e não a partir da prova da existência de registro do empresário ou ente empresarial por aquele lapso temporal Manutenção do deferimento do processamento da demanda Agravo de instrumento desprovido.

Conforme se observa das decisões supramencionadas, o Tribunal de Justiça de São Paulo vem autorizando o processamento de recuperação judicial de produtor rural que conseguir comprovar a prática da atividade empresarial há mais de dois anos, mesmo que o registro na junta comercial tenha ocorrido há menos tempo.

Assim, o produtor rural pessoa física tem direito cristalino à recuperação judicial, mesmo que tenha providenciado o seu registro na junta comercial exclusivamente para preencher o requisito relacionado à empresarialidade da atividade econômica em crise.

A LRE não preceitua um prazo mínimo de existência do registro na Junta Comercial para admitir a recuperação judicial pelo produtor rural. Não havendo prazo mínimo, qualquer que tenha sido a época da inscrição, desde que anterior ao pedido, o requisito da empresarialidade da atividade estará plenamente atendido.

No que tange ao modus operandi da recuperação judicial do produtor rural pessoal física, importante destacar que o produtor deve criar (mediante registro na junta comercial) uma pessoa jurídica com a finalidade de exercer a mesma atividade que ele já exerce como pessoal física, tornando-se sócio com responsabilidade ilimitada.

A construção do raciocínio em busca do êxito da recuperação judicial do produtor rural, pessoa física, foi muito bem resumido em artigo publicado no Consultor Jurídico pelo Advogado Thiago Soares Gerbasi: [9]

  • A recuperação judicial é procedimento positivado em benefício do empresário ou da sociedade empresária, para viabilizar a superação da crise (art. 1º e 47 da LRF);
  • O produtor rural seria empresário porque exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção de bens (cf. art. 966 do Código Civil) que está em crise;
  • O registro na Junta Comercial seria uma faculdade ao produtor rural (art. 971 do Código Civil), diferentemente do que ocorreria com as demais atividades (art. 966 do Código Civil);
  • A PJ PRODUTOR é sociedade empresária que exerce a mesma atividade do produtor rural, sendo uma extensão deste último após o registro;
  • O requisito de 2 anos de exercício da atividade (art. 48 da LRF) pela PJ PRODUTOR seria superado por conta do exercício da atividade pelo produtor rural mediante a existência de Declaração de Informações Econômico-fiscais da Pessoa Jurídica – DIPJ (art. 48, §2º da LRF);
  • Logo, na condição de sócio solidário da PJ PRODUTOR, o deferimento da recuperação judicial em favor da PJ PRODUTOR suspenderá também todas as ações e execuções movidas contra o produtor rural (art. 6º da LRF), mantendo intacto o vasto patrimônio que ele construiu exercendo atividade rural na condição de pessoa natural.

Desse modo, a estrutura para esse modelo de recuperação judicial se diferencia tão somente pela desnecessidade do lapso temporal de dois anos de registro na junta comercial, eis que a atividade empresarial não se constitui com o registro, mas sim com o desenvolvimento de atividade econômica de forma organizada, sendo o registro na junta comercial uma mera faculdade do produtor rural, com natureza declaratória de uma atividade já existente.

[1] FRAN MARTINS, Curso de direito comercial. 2ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 1958, pg. 77.

[2] SÉRGIO CAMPINHO, O direito de empresa. 11ª edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, pg. 4.

[3] J. X. CARVALHO DE MENDONÇA, Tratado de direito comercial. São Paulo: Saraiva, 1960, vol. 2, pg. 25.

[4] SYLVIO MARCONDES, Questões de direito mercantil. São Paulo: Saraiva, 1977, pg. 12.

[5] PAULO FERNANDO CAMPOS SALLES DE TOLEDO, Comentários à lei de recuperação de empresas e falência. Coordenado por Paulo Fernando C. S. Toledo e Carlos Henrique Abrão. São Paulo: Saraiva, 2005, pg. 3.

[6] LUÍS ROBERTO BARROSO, Curso de direito constitucional contemporâneo. 4ª edição, 2ª tiragem. São Paulo: Saraiva, 2014, pg. 325.

[7] FÁBIO ULHOA COELHO, Curso de Direito Comercial. Vol.3.

[8] BRASIL. Lei nº 11.101, de 09 de fevereiro de 2005.

[9] BRASIL. Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002.

[10] A controversa recuperação judicial do produtor rural. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI273657,31047A+controversa+recuperacao+judicial+do+produtor+rural >Acesso em: 11.06.2018.